“Não há oposição entre crescimento econômico e conservação e uso sustentável da natureza”, diz um dos autores de diagnóstico sobre biodiversidade

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O pesquisador Fabio Scarano fala em entrevista sobre o papel da floresta no atual cenário brasileiro, alternativas agrícolas e incentivo à pesquisa e à conservação

Fabio Scarano é um dos autores do estudo.

Foi lançado em novembro do ano passado pela Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES) o Sumário para Tomadores de Decisão: 1º Diagnóstico Brasileiro de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, estudo voltado aos responsáveis pela tomada de decisão nas esferas pública e privada que mostra o uso sustentável dos ativos ambientais e a conservação da biodiversidade como pontos estratégicos para o desenvolvimento do Brasil.

Foram três anos de produção do relatório, reunindo mais de uma centena de cientistas envolvidos. Fabio Sacarano, doutor em Ecologia pela Universidade de St. Andrews, na Escócia, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos coordenadores gerais da BPBES, foi um dos autores do levantamento. O professor faz parte da rede da Conexsus e concedeu uma entrevista exclusiva sobre o estudo, que teve como diferencial os conteúdos preliminares terem sido levados para debate com atores de diferentes setores da sociedade civil, como empresas, ONGs, governo federal, movimento indigenista e jornalistas. A partir desses apontamentos, foram feitos ajustes e adições.

“Nossa expectativa futura é de refinar ainda mais esse processo de consulta, para que o relatório possa ser dinâmico, vivo e participativo, e não apenas um produto para repousar em estantes”, comenta. Para o pesquisador, além de alguns problemas habituais, os brasileiros já têm encontrado soluções de comportamento, tecnológicas e políticas para lidar melhor com o cenário atual, o que gera a oportunidade única de tratar a biodiversidade como solução, e não como problema.

Leia a entrevista exclusiva na íntegra:

Conexsus: Uma constatação do relatório é que a combinação incomum encontrada no Brasil de gigantesco capital natural e de uma crise sistêmica resulta na dependência (maior ainda) da manutenção da biodiversidade para a produção econômica. Como fazer o uso correto dos recursos naturais para o desenvolvimento do país em momentos delicados assim? Quais os mecanismos para esse uso?

Fabio Scarano: Nossa agricultura depende de polinizadores e água, nossa energia depende de água, nossa cultura é intrinsecamente ligada à natureza que nos cerca, um clima estável é dependente das vegetações nativas. O Brasil ainda dispõe de tudo isso em quantidade, apesar de sua grande pujança econômica. Temos ciência, tecnologia, economia, diversidade cultural, e também temos natureza em abundância. Essa combinação é incomum no planeta e nos dá uma grande vantagem comparativa. O relatório mostra casos e fatos que indicam que não há oposição entre crescimento econômico e conservação e uso sustentável da natureza. Pelo contrário, existe um grande potencial para sinergia que precisa ser realizado.

“É preciso intensificar o diálogo entre ciência e outras formas de interpretação da realidade, como a arte, o conhecimento prático, a espiritualidade, o conhecimento indígena e local. Nos tempos atuais, o Brasil e o mundo não podem abrir mão de nenhuma das ferramentas existentes nesses diferentes campos e isso requer diálogo e respeito”

O relatório também mostra que a intensificação das mudanças climáticas, a perda de biodiversidade e de vegetação nativa e o comprometimento dos serviços ecossistêmicos provocará a perda da produtividade agrícola no país, caso os modos de produção não se adaptem a esse cenário de mudanças. Quais as alternativas para essa estimativa alarmante?

O Brasil tem em área de pecuária improdutiva quase a mesma quantidade que tem de área dedicada ao agronegócio. Isso significa dizer que, com políticas fundiárias adequadas, poderíamos no mínimo dobrar a produção agropecuária do país sem cortar uma árvore sequer. Nesse sentido, a agroecologia tem um importante papel a cumprir. Me impressiona particularmente a agricultura sintrópica e outras formas de agricultura com caráter sucessional, que além de produzirem alimento ajudam até a regenerar a natureza nativa em áreas degradadas. Ao falar isso, me recordo que esse é um tema que talvez merecesse até um dos nossos relatórios temáticos! Com isso quero dizer que, cientes que nesse primeiro relatório geral não tínhamos como abarcar em detalhes todos os campos que a discussão da biodiversidade toca, temos fomentado relatórios temáticos. Lançamos em dezembro um relatório sobre a relação biodiversidade-mudanças climáticas, em fevereiro estará sendo lançado um sobre polinização e no primeiro semestre de 2019 ainda lançaremos um sobre água e outro sobre restauração ecológica. Em 2020, nossos colegas estão empenhados em lançar um sobre comunidade indígenas e locais, já em produção.

É essencial a organização por parte do governo de políticas que acompanhem e mitiguem as características desse quadro de alerta para a biodiversidade que já se apresenta. Porém, também é importante que não se dependa apenas disso. Como você vê a participação de organizações do terceiro setor, empresas e até mesmo os cidadãos no ideário e prática de soluções nesse sentido?

Esse é um ponto importantíssimo. Somos muito bons em botar a culpa nos outros. Os governos são sempre um primeiro alvo das nossas reclamações. Nesse ponto, quem falou tudo foi [Mahatma] Gandhi: temos que realizar em nós mesmos as mudanças que queremos ver no mundo. Se nós, cidadãos mudamos, por exemplo, com nosso consumo, afetamos a forma das empresas definirem seu perfil de produção, afetamos o olhar do terceiro setor e influímos nos rumos de gestão econômica e estratégica do próprio governo. A mudança começa em nós mesmos, na nossa casa.

Como o uso e o acesso com equidade ao capital natural brasileiro é ferramenta fundamental para a superação – ou diminuição – da desigualdade social latente em nosso país? E para a saúde humana, é fundamental também?

A vida no planeta melhorou em quase todos os sentidos ao longo dos últimos 30 ou 40 anos. A pobreza foi reduzida, a escolaridade aumentou, a longevidade aumentou, e por aí vai. No Brasil, não foi diferente. Em três aspectos, porém, o mundo tem só piorado nesse mesmo período: 1) desigualdade social só aumenta; 2) desmatamento só aumenta; 3) emissão de gases estufa quebra recorde todo ano. O Brasil, de novo, segue esse padrão mundial, apesar das reduções no desmatamento na Amazônia (que, por sinal, tem crescido de novo). A nosso ver, e o relatório temático biodiversidade-clima reforça esse ponto, essas três coisas nas quais o mundo tem piorado, podem encontrar solução com base na natureza. A partir da natureza conservada ou restaurada, pode-se erguer uma nova economia, de baixo carbono, e que gera e distribui renda para as pessoas que vivem da natureza e a protegem. Óbvio que isso teria impactos sobre a saúde. Por exemplo, há hoje projeções que num mundo 4ºC acima da era pré-industrial (previsto para 2100, se nosso padrão de emissão de gases estufa persistir como no presente), crianças abaixo de 10 anos e idosos com mais de 60 terão um maior índice de doenças respiratórias e de outros tipos, que teria eventuais impactos sobre a pirâmide etária mundial. Outro exemplo é do enorme potencial médico, farmacológico e biotecnológico, ainda em grande parte oculto e não realizado, que a vasta natureza brasileira dispõe.

“A partir da natureza conservada ou restaurada, pode-se erguer uma nova economia, de baixo carbono, e que gera e distribui renda para as pessoas que vivem da natureza e a protegem”

Como a conectividade entre os territórios e mesmo entre os atores atuantes no uso da terra podem diminuir a pressão sobre as áreas com vegetação nativa? Qual o papel do trabalho em rede para a gestão da biodiversidade?

Ao falar em conectividade, podemos pensar em estradas e em internet, mas também em fluxo de serviços ambientais (como água, clima, alimento), ou em intercâmbio de culturas, práticas, ou ainda em compartilhamento e uso racional. Dois grandes prazeres humanos são ensinar e aprender e só com conexões conseguimos multiplicar nossas chances individuais e coletivas de realizarmos esses dois “prazeres”. Assim, conectividade é uma das principais palavras-chaves desse milênio. Cada vez mais temos a possibilidade de transitar entre bairrismo, regionalismo, nacionalismo e globalismo, sem perder a identidade. A Conexsus, a meu ver, é uma dessas fábricas de conexões, tão necessária nos tempos atuais.

Em relação à perda de habitats naturais por desmatamento, no contexto atual, qual o bioma ou área que se encontra em maior risco? Qual seria o processo de restauração ideal para locais devastados?

Todas. A diferença é que em umas o desmatamento em grande parte já se deu, como na Mata Atlântica, em outros ele têm se dado velozmente, como na Caatinga e Cerrado, em outros ainda há muita natureza em pé, mas sempre ameaçadas, como na Amazônia, e em outros o risco de mudanças para outros usos, e consequente indução de desequilíbrio, é constante, como no Pampa e Pantanal. A restauração tem que respeitar a natureza de cada um desses biomas e lembrar sempre que é muito mais caro restaurar do que conservar. Para restaurar o passivo, inclusive legal, que criamos como sociedade, vai ser necessário surgir uma nova economia que demande viveiros, coletores de semente, plantadores, etc.

Que tipo de incentivo pode ser dado às populações tradicionais – como etnias indígenas e quilombolas – para que gerem renda a partir da natureza conservada? Desenvolvimento de pequenos negócios já existentes é um caminho?

Não me resta dúvida que sim, e aqui, novamente, queria dar um imenso destaque ao trabalho que a Conexsus vem fazendo. Soluções dessa ordem precisam ganhar escala e muitas vezes incentivos e capacitação são pré-requisitos para tal. Essa sim é a nova economia!

Por que a preservação das Reservas Extrativistas e outros locais onde vivem as populações tradicionais é significativa para a conservação da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos?

Além de conhecimento, cultura e visão de mundo ricos e próprios, os povos indígenas e populações tradicionais possuem terras. Povos indígenas manejam ou possuem direitos sobre cerca de 38 milhões de km2 – cerca de 25% de toda a superfície continental do planeta – em 87 países em todos os continentes. Isso indica que o direito à terra e à repartição de benefícios é essencial para o alcance de metas nacionais e globais de conservação, de combate às mudanças climáticas e de sustentabilidade. No Brasil, cerca de 1,2 milhões de km2 (14% do território nacional) são terras indígenas, que têm sido reconhecidas como mais eficientes que outros tipos de áreas protegidas no país para a conservação da biodiversidade e para o combate às mudanças climáticas. Comunidades indígenas também têm grande importância na conservação da agrobiodiversidade. Apesar da indiscutível relevância das terras indígenas e de outras comunidades locais para a conservação da biodiversidade, o combate às mudanças climáticas, a segurança alimentar, a promoção de diversidade cultural e a justiça social, persistem os problemas relacionados à situação fundiária e a conflitos de terra no Brasil. Isso precisa ser revertido.

Em que sentido as pesquisas científicas (como as da BPBES), geração de dados e sua análise podem colaborar para o desenvolvimento efetivo de soluções para o meio ambiente?

A ciência já contribui para esse fim, mas acho que ainda somos muito disciplinares na nossa abordagem. As ciências naturais e sociais precisam se integrar cada vez mais, para gerarem produtos mais prontamente aplicáveis à política e à tomada de decisão. É preciso intensificar o diálogo entre ciência e outras formas de interpretação da realidade, como a arte, o conhecimento prático, a espiritualidade, o conhecimento indígena e local. Nos tempos atuais, o Brasil e o mundo não podem abrir mão de nenhuma das ferramentas existentes nesses diferentes campos e isso requer diálogo e respeito.

* Fabio Rubio Scarano é professor associado de Ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisador associado da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável. É um dos coordenadores gerais da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES) e liderou o capítulo sobre Opções de governança e tomada de decisão através de escalas e setores.

Fabio é graduado em Engenharia Florestal pela Universidade de Brasília (UnB) e doutorou-se em Ecologia na Escócia, na Universidade de St. Andrews. Possui mais de 100 publicações científicas, orientou mais de 30 alunos de mestrado e doutorado.

Foi autor do Painel Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC) e é membro da Linnean Society of London.

Atuou na CAPES-MEC (2005-2011), foi Diretor de Pesquisa do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (2007-2009) e Vice-Presidente da Conservation International (2009-2015).

Recebeu o Prêmio Jabuti pelos livros Biomas Brasileiros: Retratos de um País Plural (2012) e Mata Atlântica: Uma História do Futuro (2014).