Opinião – Redes de uma bioeconomia da sociobiodiversidade amazônica

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Pedro Frizo é economista (ESALQ-USP) e mestre em sociologia (UFRGS), atualmente faz parte do quadro de colaboradores da Conexsus.

A difusão de inovações tem ocupado posição central nas principais políticas e programas de desenvolvimento rural desde a segunda metade do século passado. Sob uma perspectiva territorial, despontam casos emblemáticos de regiões em diferentes partes do Brasil e do mundo que se integraram às cadeias nacionais e globais de valor a partir da produção de mercadorias especializadas e amparadas em diversos tipos de inovações produtivas, tecnológicas, organizacionais ou comerciais. Tais processos inovadores contribuem para a diferenciação econômica dos empreendimentos e, consequentemente, para a geração de renda local.

Ao olharmos para os ativos da bioeconomia amazônica, diversos são aqueles cuja produção e comercialização se organizam em cadeias nacionais ou globais, tais como o açaí, cacau, castanha-do-brasil, pescado e certas sementes direcionadas para a produção de fármacos e cosméticos. Um recente estudo produzido pela The Nature Conservancy (TNC – Brasil), em que diferentes territórios amazônicos são analisados em termos de volume de produção de diferentes ativos amazônicos, permite identificar claramente quais regiões formam a base produtiva das cadeias acima mencionadas. É basicamente impossível imaginar a cadeia do açaí, por exemplo, desvinculada das comunidades que exploram o açaí na região do baixo Tocantins, ou mesmo a cadeia da castanha e do pirarucu sem a atividade de coleta e pesca existente na Calha Norte paraense e no Médio Juruá, respectivamente.

Sustentar a integração diferenciada de empreendimentos desses e de outros territórios amazônicos aos mercados demanda pequenas e grandes inovações que dependem muito além daquelas classicamente defendidas por diversos autores, tais como mão de obra qualificada, tecnologia e capital. A configuração de redes locais de relações estratégicas em condições propícias para a adoção e circulação de novas formas organizacionais, lógicas de produção e de comercialização deve ser igualmente levada em conta como dimensão impreterível e, consequentemente, como prioridade de qualquer iniciativa de apoio local e regional.

As últimas duas décadas têm sido extremamente frutíferas em aprofundar cada vez mais o entendimento sobre a interdependência existente entre as formas de organização social local e a emergência, difusão e circulação de inovações vinculadas a processos de desenvolvimento territorial sustentável. Termos sinônimos, mas que exprimem pontos muitos similares, como “capital social”, “ecossistemas locais/regionais” e “redes sociais” têm ampliado cada vez mais o horizonte de atuação de organismos filantrópicos, instituições de apoio e governos em diversas regiões do mundo. Ao pensarmos, no caso brasileiro, em estratégias para uma bioeconomia da sociobiodiversidade amazônica, a fundamentação de condições organizativas e relacionais locais propícias para impulsionar soluções e inovações na direção de uma economia da floresta em pé deve ser tema prioritário.

Porém, quais são os atributos de uma rede local/regional que venham a interferir positivamente na emergência, difusão e circulação de inovações? Longe de uma resposta única, diversos têm sido os autores e estudos especializados em analisar as relações de causa e efeito entre formas específicas de configuração das redes de relações e o grau de êxito das estratégias de conservação e valorização dos recursos naturais de um determinado território. Neste artigo, iremos nos ater a três deles.

Um dos primeiros e principais atributos trata-se do grau de adensamento entre os diversos atores de um território. Em outras palavras, quanto maior o número de conexões e padrões estáveis de relações entre indivíduos, instituições, empresas e outras organizações de um território, maior tendem a ser os laços de confiança mútua. Classicamente, redes adensadas têm sido categorizadas como redes que sustentam altos índices de capital social e de reduzidos custos associados à formação e consolidação de ação coletiva, tendo sido ilustradas de maneira mais ampla por processos de formação de grupos – i.e., de “clusterização”².

Neste sentido, a criação e perpetuação de associações e cooperativas no meio rural e florestal representam um importante processo de adensamento das relações e de fundamentação de ação coletiva, propiciando a emergência de formas inovadoras de impacto sobre a geração de renda, tais como a organização e planejamento produtivo com vistas à integração aos mercados, assistência técnica orientada à diferenciação da produção, governança territorial e ambiental entre outras ações-chave. Infelizmente, no campo do cooperativismo solidário, ainda há espaço para um maior adensamento em torno das organizações comunitárias: de acordo com dados levantados pelo Programa de Assessoria da Conexsus em 2021, cerca de 10% dos associados das cooperativas e associações acompanhadas pelo programa representam 50% da movimentação financeira destas organizações para a aquisição de mercadorias³. Isto ilustra que, para boa parte dos produtores e coletores locais, outros canais de comercialização são mais relevantes do que tais empreendimentos, geralmente associados a formas de comercialização mais precárias e intermitentes.

Uma vez consolidados diferentes grupos de relações adensadas em um território, emerge um segundo atributo relacional de grande relevância: a coesão entre diferentes grupos. A integração entre comunidades/nichos de indivíduos ou organizações permite maior diferenciação no tipo de recursos financeiros, técnicos, aprendizados, conhecimentos e informações que circulam entre os grupos, o que tende a trazer resultados positivos sobre dimensões como a produtividade, estratégias de comercialização, boas práticas de produção e temas correlatos. Nesta direção, as redes de cooperativas, organizadas em federações, cooperativas centrais ou mesmo em redes informais, têm sido essenciais para lograr maior complementariedade de portfólio de produção e, com isso, ampliar a competitividade de diversos empreendimentos solidários em diversas regiões do Brasil – uma inovação organizacional que, claramente, apresenta amplo potencial também para a Amazônia, onde despontam algumas iniciativas nesta direção³.

Por fim, a diversidade das relações existentes não somente em um território, mas também de atores situados além de seus limites e que se conectam a indivíduos e organizações aí inseridos, é um terceiro e essencial atributo relacional para o desenvolvimento territorial. Redes mais diversas tendem a presenciar a circulação de recursos e informações dos mais variados tipos e que habilitam, em última instância, com que processos de inovação tenham os insumos necessários para que venham a emergir.

Sem embargo, o grau de heterogeneidade das relações existentes é extremamente diverso e desigual entre os territórios amazônicos, com regiões com amplo espectro de perfis organizacionais conectados e de elevada visibilidade pública, ao passo que outros territórios guardam reduzida pluralidade de entidades ali atuantes e de conhecimento público para além de seus limites geográficos. O mapeamento produzido no âmbito do Desafio Conexsus, em 2018, ilustra o reduzido grau de heterogeneidade das relações estabelecidas pelos negócios comunitários amazônicos. Segundo os dados levantados, cerca de 70% das parcerias mais estratégicas declaradas pelas mais de 400 cooperativas e associações mapeadas na Amazônia se resumem a três grandes categorias de atores: governos – geralmente para a operacionalização de políticas públicas como a PGPM-Bio, o antigo PAA e o PNAE –, organizações não-governamentais e sindicatos. Ou seja, ainda há amplo espaço para conectar uma gama mais variada de atores, como empresas, fundações, universidades, instituições financeiras e outras entidades, especialmente em uma conjuntura nacional e global crescentemente atenta aos índices alarmantes de desmatamento.

Longe de sintetizar totalmente como redes locais e regionais contribuem para sustentar processos estruturados de desenvolvimento territorial sustentável, os atributos acima possuem amplo potencial de serem explorados em iniciativas e programas voltadas a consolidar a bioeconomia da sociobiodiversidade amazônica como uma solução de desenvolvimento sustentável ao bioma. Uma vez apresentados, necessitam serem compreendidos de maneira aprofundada sobre como são formados de fato, para então sustentar uma agenda de discussões sobre soluções que contribuam para a sua fundamentação nos diferentes territórios amazônicos. É premente que esta discussão, bem como o planejamento e implementação de iniciativas associadas a este debate, seja conduzida em conjunto e com o protagonismo de atores locais, a fim de levar em consideração as histórias e realidades subjacentes à formação social e econômica de cada território da Amazônia.

 

¹ Do inglês “cluster”, isto é, “agrupamento”.

² Dados a nível Brasil, não direcionados exclusivamente para a análise de organizações amazônicas.

³ Destacamos como exemplo de iniciativas que permitem maior coesão entre grupos e comunidades a Rede Jirau de Agroecologia (baixo Tocantins, Pará), a Federação de Rondônia da União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária (Fecafes/RO), a Cooperativa Central de Comercialização Extrativista do Acre (Cooperacre, Acre) e a Cooperativa Central de Produção Orgânica da Transamazônica e Xingu (Cepotx, Pará).

 

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