Pedro Frizo é economista (ESALQ-USP) e mestre em sociologia (UFRGS). Na Conexsus, lidera o núcleo de Negócios Comunitários e Ecossistemas Regionais.
Entre os dias 14 e 17 de maio, a Conexsus teve a oportunidade de participar de mais uma edição da Bio Brazil Fair & Naturaltech, realizada no município de São Paulo. Com estande próprio para divulgação de produtos de diferentes cooperativas e associações do agroextrativismo, especialmente originadas do Cerrado, a iniciativa faz parte de um esforço coletivo de diversas instituições ao longo dos últimos anos de apoiar a entrada de negócios comunitários na maior feira de alimentação saudável da América Latina.
Durante a participação na feira, chamou a atenção o espaço relativamente pequeno que tais empreendimentos ainda ocupam frente ao perfil geral de expositores, formados em sua maioria por empresas de médio e grande porte do setor alimentício. Essa percepção sobre o evento é uma pequena, mas relevante, amostra sobre como o sistema alimentar voltado a atender a demanda por alimentação saudável vem se estruturando no Brasil. Atualmente, há uma camada crescente de consumidores ávidos por produtos com melhores composições nutricionais e impactos positivos sobre a saúde e nutrição individual, sendo necessário compreender a estrutura de oferta desses alimentos a esse segmento de consumidores.
Um sistema alimentar pode ser compreendido como uma complexa teia de relações entre produtores, organizações produtivas, distribuidores, mercados, consumidores e instituições associadas à produção, colheita, beneficiamento, distribuição e comercialização de alimentos. A crescente demanda por alimentos saudáveis tem estimulado a estruturação de um sistema alimentar no Brasil voltado a prover, promover e orientar a circulação de gêneros alimentícios que buscam satisfazer uma demanda que, geralmente, se encontra em uma classe de consumidores situados primordialmente nos grandes centros urbanos – curiosamente, o fortalecimento gradativo desse “nicho” de mercado pode ser contrastado com a crescente dificuldade dos sistemas alimentares no Brasil em atender, especialmente após a pandemia, as necessidades mais básicas de ampla maioria da população, uma vez que mais de 58,7% dos brasileiros estão sujeitos a algum tipo de insegurança alimentar e nutricional.
É fato que a busca cada vez maior entre parcela significativa de consumidores por alimentos saudáveis pode acarretar consequências muito positivas a quem está produzindo “comida de verdade”: as cooperativas e associações da agricultura familiar, de populações extrativistas, de grupos indígenas e quilombolas e outras populações tradicionais, geralmente calcadas em modos de produção orientados à exploração sustentável dos elementos da biodiversidade brasileira. Entretanto, o usufruto efetivo do crescente potencial de mercado para a geração de renda a esses grupos não dependerá somente do quão disruptiva e sólida for a demanda por alimentos saudáveis, mas sim em como os sistemas alimentares se estruturarão nos próximos anos.
Neste sentido, algumas considerações importantes devem ser feitas. Primeiramente, é necessário direcionar parte expressiva da demanda por alimentos saudáveis para produtos que efetivamente são produzidos no território nacional e, principalmente, vinculados à sociobiodiversidade existente nos biomas brasileiros. Diversos são os produtos posicionados como “campões de mercado” cujos ingredientes tratam-se de matérias-primas estrangeiras a qualquer bioma no Brasil, não se constituindo como produto importante na realidade socioprodutiva de comunidades rurais e florestais.
Além disso, é crucial desvelar o potencial nutricional dos produtos da sociobiodiversidade brasileira, como forma de ampliar o conhecimento dos consumidores sobre o valor nutricional dos mesmos, sustentando a sua demanda no longo prazo. Experiências recentes como as ações de promoção da marca “Gosto da Amazônia” entre bares e restaurantes do Rio de Janeiro e a série de webinars “Dos Biomas à Mesa” que a Conexsus, em parceria com o Instituto Auá, promoveu ao longo de 2022 são exemplos de ações que buscam ampliar o conhecimento do público sobre o valor nutricional de uma série de ingredientes e produtos tipicamente brasileiros.
Por fim, mas não menos importante, os sistemas alimentares ao longo das próximas décadas não deveriam se basear em estruturas e institucionalidades excludentes aos negócios comunitários. O sistema alimentar moderno e predominante no Brasil, estruturado principalmente a partir dos anos 1960 e classificado por Niederle e Wesz Junior como “ordem industrial”, esteve baseado no poder assimétrico das companhias estaduais de abastecimento e do grande varejo na distribuição dos alimentos, distanciando o consumidor final urbano do produtor rural, bem como restringindo cada vez mais a remuneração de negócios comunitários no valor adicionado ao longo das cadeias produtivas.
Não à toa, uma publicação realizada no ano passado pelo Instituto Internacional para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (IIED), após vasta revisão de literatura, centrou relevância expressiva nas soluções e serviços que operam como “intermediários do bem” entre os mercados e as organizações produtivas como uma das principais frentes para a inclusão competitiva de pequenos produtores nos sistemas alimentares. Neste sentido, a estruturação em larga escala de canais de comercialização e de comunicação propícios para a aproximação entre negócios comunitários e o consumidor final pode contribuir para a superação de custos de transação historicamente altos e impeditivos para que uma relação direta e sustentável entre quem produz e quem consome se estabeleça.
Uma sociobioeconomia justa e inclusiva dificilmente se consolidará sem um repensar profundo dos sistemas alimentares no Brasil. Produtos e organizações produtivas da sociobiodiversidade apresentam um potencial enorme não somente em atender à crescente demanda por alimentos saudáveis, mas também na resolução do dramático problema de insegurança alimentar e nutricional que a maioria dos brasileiros atravessam atualmente.
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